Artigo – Uma análise diante do julgamento do STF
Uma análise diante do julgamento do STF: como as circunstâncias do caso podem atestar a prática do crime de apropriação indébita
Em julgamento encerrado nesta quarta-feira, 18 de dezembro de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pelo enquadramento criminal nos casos de não recolhimento de ICMS próprio declarado pelo contribuinte. Por 7 votos a 3, a Corte concluiu pela tipificação penal da conduta.
O caso julgado diz respeito a recurso apresentado por dois lojistas denunciados pelo Ministério Público Estadual de Santa Catarina, ante o não recolhimento de valores relativos ao ICMS no período de 2008 a 2010. Em outubro de 2018, após o Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerar como crime a inadimplência fiscal relativa ao ICMS declarado, as partes apresentaram o Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC 163.334), cujo julgamento foi concluído nesta quarta-feira, 18.
O relator do caso, ministro Luís Roberto Barroso, votou pela criminalização da prática, com a ressalva de que a falta do recolhimento não seria um mero inadimplemento tributário, mas crime de apropriação indébita. Entretanto, tal conduta exige que seja comprovado o dolo, isto é, a intenção de se cometer o crime, uma vez que tal prática não comporta a modalidade culposa (sem intenção). De acordo com o ministro, “o inadimplente eventual é totalmente diferente do devedor contumaz, que faz da inadimplência tributária seu modus operandi.”
É justamente por essa razão que o próprio relator salientou a necessidade de que o caso concreto seja examinado, a fim de se distinguirem os comerciantes ou contribuintes que estão enfrentando alguma dificuldade momentânea daqueles que adotam a prática incorreta, sendo reconhecidos como “devedores contumazes.”
Acompanharam o relator pela criminalização os ministros Alexandre de Moraes, Dias Tofolli, Edson Fachin, Luiz Fux, Rosa Weber e Cármen Lúcia. Já o ministro Gilmar Mendes abriu divergência e votou pela não criminalização da conduta, entendimento que foi seguido pelos ministros Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio.
É válido salientar o voto do ministro Edson Fachin, segundo o qual o valor que entra no caixa do comerciante a título de ICMS apenas circula na sua contabilidade, sem ingressar, definitivamente, no patrimônio da empresa. Por isso, o ministro entende que o não pagamento do ICMS declarado não deve configurar um mero inadimplemento fiscal, “mas sim a disposição de recurso de terceiro.” Nesse raciocínio, o pagamento do tributo seria um ônus do consumidor, de modo que o empresário/comerciante não poderia se olvidar de realizar o devido repasse para a administração estadual.
Semelhantemente, a ministra Rosa Weber enfatizou que, na sua percepção, a cobrança do ICMS e a posterior omissão de recolhimento pelo comerciante caracteriza apropriação do valor de terceiro (ou seja, do Fisco), o que legitimaria a tipificação penal.
Inclusive, os ministros que votaram pela tipificação da conduta deixaram claro que o posicionamento da Corte está alinhado com o decidido no Recurso Extraordinário (RE) 574.706. Neste caso, o Supremo entendeu que o ICMS não deve integrar a base de cálculo das Contribuições para PIS e para a Cofins, pois não constitui faturamento do contribuinte (isto é, do comerciante).
Foi mencionada, ainda, a correlação lógica entre os dois julgamentos. Se o ICMS não constitui faturamento da empresa, não pode ingressar no patrimônio do contribuinte. Por conseguinte, o não recolhimento do imposto representaria apropriação de coisa alheia, conduta esta criminosa, uma vez comprovada a intenção do agente.
Logo, o entendimento majoritário firmado pela Corte Suprema é no sentido de que o não recolhimento do ICMS se insere no conceito de crime previsto no Art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990, que dispõe sobre os crimes contra a ordem tributária: “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”.
Como já mencionado, a decisão do Ministro Barroso não visa criminalizar o mero inadimplemento de um empresário que, em virtude de dificuldade financeira optou pelo pagamento dos salários ao pagamento do ICMS. Tanto é assim que o eminente ministro propôs que seja firmada a seguinte tese jurídica: “O contribuinte que deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137/1990 desde que aja com intenção de apropriação do valor do tributo a ser apurada a partir das circunstâncias objetivas factuais”.
Como o julgamento foi concluído no dia de ontem, entendemos que ainda é cedo para extrair conclusões definitivas sobre tal tese. Observa-se que a intenção de apropriação do valor do tributo, a ser “apurada a partir das circunstâncias objetivas factuais”, dependerá de uma análise do caso concreto e das provas acerca da conduta criminosa.
Isso significa que será indispensável a análise contábil e fiscal das empresas para o exame de elementos fáticos que demonstrem se o caso envolve, ou não, o inadimplemento do tributo por dificuldades eventuais da empresa.
Disso se infere que o inadimplemento eventual do ICMS resultante da falta de recursos para o pagamento de funcionários, fornecedores ou, ainda, para a manutenção das atividades da empresa não pode caracterizar cometimento de crime.
Apesar desse entendimento, é de extrema importância que o voto do Relator especifique, em termos práticos, quais são as circunstâncias objetivas e factuais hábeis a demonstrar a intenção de apropriação do valor do tributo. Noutras palavras, cabe à Corte esclarecer os aspectos fáticos suficientes para descaracterizar a conduta criminosa, evitando que o julgado possa trazer insegurança jurídica aos contribuintes.
Um ponto positivo abordado no julgamento passa pelos danos que a inadimplência tributária dolosa pode causar à concorrência e ao ambiente de negócios. Os devedores tidos por contumazes, que utilizam o não pagamento de tributos como verdadeira estratégia de gestão empresarial, além de prejudicarem os cofres públicos, concorrem de forma desleal. Também por esse motivo é necessário se ater às circunstâncias do caso, inclusive aos registros contábeis, a fim de verificar se há, ou não, provas de não pagamento reiterado, doloso e que cause danos às demais empresas no mercado.
Logo, considerando esses detalhes do julgamento, verifica-se a relevância da contabilidade para determinar se as circunstâncias factuais do não recolhimento do tributo demonstram, ou não, a intenção criminosa e, consequentemente, a prática da apropriação indébita.
Em conclusão, cremos que a grande maioria dos empresários brasileiros, fiéis cumpridores de suas obrigações com a nação, não precisam temer essa decisão da Suprema Corte.
Por Idésio da Silva Coelho Jr.
Vice-Presidente Técnico do CFC